A Corrupção da Inteligência
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22 b. Podemos por nós mesmos controlar bem nossa vida?
Iremos tratar o terceiro aspecto, ou seja, o conhecimento da norma conforme a qual temos de ordenar nossa vida, o qual chamamos de justiça das obras.
Com respeito a isto parece que o entendimento do homem tem melhor aceitação nas coisas tratadas antes. Porque o apóstolo testifica que os gentios que não tem lei, são lei para si mesmos; e demonstram que as obras da Lei estão escritas no seu coração, e que suas consciências lhes dão testemunho, e seus pensamentos lhes acusam ou defendem diante do juízo de Deus. “Porque para com Deus não há acepção de pessoas. Assim, pois, todos os que pecaram sem lei também sem lei perecerão; e todos os que com lei pecaram mediante lei serão julgados. Porque os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados. Quando pois os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei por si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutualmente acusando-se ou defendendo-se(Rm.2:11-15). Se os gentios têm naturalmente gravada em sua alma a justiça da Lei, não podemos dizer na verdade que são de todo cegos referente a como hão de viver. E é coisa corrente dizer que o homem têm conhecimento suficiente para viver bem conforme esta lei natural, da qual fala o apóstolo. Consideremos, portanto com que propósito foi dado aos homens este conhecimento natural da Lei; então compreenderemos até onde nos guiar para nos levar a razão e a verdade.
Definição de lei natural. Esta torna o homem indesculpável
Também as palavras de Paulo nos farão compreender isto, se entendemos devidamente o texto citado. Pouco antes havia dito que os que pecaram debaixo da Lei, pela Lei serão julgados, e que os que sem Lei pecaram, sem Lei pereceram. Como o último poderia parecer injusto, que sem juízo algum anterior foram condenados os gentios, complementa em seguida que sua consciência lhes servia de lei, e, portanto, bastava para condená-los com justiça. Por conseguinte, o fim da lei natural é fazer o homem indesculpável. E poderíamos defini-la adequadamente dizendo que é um sentimento da consciência mediante a qual discerne entre o bem e o mal o suficiente para que os homens não tenham como pretexto ignorância, sendo convencidos por seu próprio testemunho. Há no homem tal inclinação para adular-se, que sempre, enquanto lhe é possível afastar seu entendimento do conhecimento de suas culpas. Isto parece que moveu a Platão a dizer que ninguém peca, a não ser por ignorância1 .Seria verdade, se a hipocrisia dos homens não tivesse tanta força para encobrir seus vícios, que a consciência não sinta escrúpulo algum na presença de Deus. Mas como o pecador, que se empenha em evitar o discernimento natural do bem e do mal, se vê muitas vezes como forçado, e não pode fechar os olhos, de tal maneira que, queira ou não, têm que abri-los algumas vezes à força, é falso dizer que só peca por ignorância.
23. O filósofo Temistius aproximou-se mais da verdade, dizendo que o entendimento engana-se poucas vezes com respeito às coisas em gerais, contudo com frequência cai em erro quando julga as coisas em particular. Por exemplo: Se se pergunta se o homicídio no geral é mau, não há homem que negue; contudo aquele que conspira contra seu inimigo, pensa nisso como sendo uma coisa boa. O adultero condenará o adultério de uma forma geral, entretanto louvará o seu em particular. Assim pois, nisto apoia-se a ignorância em que o homem após julgar retamente sobre princípios gerais, quando trata-se de si mesmo em particular esquece do que havia estabelecido independentemente de si mesmo.
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1 Paráfrases no livro III: Da Alma
Disto trata magistralmente santo Agostinho quando expõe o versículo primeiro do Salmo cinquenta e sete.Entretanto, a afirmação de temistius não é de todo verdadeira. Algumas vezes a feiura do pecado de tal maneira atormenta a consciência do pecador, que quando peca não sofre engano algum referente ao que há de fazer, sendo que consciente e voluntariamente se deixa arrastar pelo mal. Esta convicção inspirou aquela sentença : “vejo o melhor e o aprovo, entretanto sigo o pior”. 2
Para suprimir toda dúvida nesta matéria, parece-me que Aristóteles estabeleceu uma boa distinção entre incontinência e intemperância. Disse ele, onde quer que a incontinência reine o homem perde, por sua desordenada concupiscência, o sentimento particular de sua culpa , que condena nos outros; pois passada a perturbação da mesma, log se arrepende; já a intemperância é uma enfermidade mais grave, e consiste em que o homem vê o mal que faz, e, entretanto não desiste, sendo que perservera obstinadamente em seu propósito.
24.Insuficiência da lei natural, que não conhece a Lei de Deus
Agora bem, quando ouvimos que há no homem um juízo universal para discernir o bem e o mal, não temo de pensar que tal juízo esteja por completo são e íntegro. Porque se o entendimento dos homens tivesse a capacidade de discernir entre o bem e o mal somente para que não usem como pretexto a ignorância, não seria necessário que conhecessem a verdade em cada coisa particular; bastaria conhece-la o suficiente para que não se isentassem sem poder ser convencidos pelo testemunho de sua consciência, e que desde esse ponto começassem a sentir temor do tribunal de Deus.
Se de fato confrontamos nosso entendimento com a Lei de Deus, que é a norma perfeita de justiça, veremos quanta é sua cegueira. Certamente, não compreende o principal da primeira tábua3 , que é por toda nossa confiança em Deus, dar-lhe louvor da virtude e da justiça;
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2 .Medeia, em Metamorfóses, de Ovídio,VII, p.20
3.Os dez mandamentos são divididos aqui em duas partes: A tábua primeira contém os quatro primeiros mandamentos relativos ao amor de Deus; a segunda tábua os seis últimos referentes ao amor ao próximo(Institutas II, VII, 11)
invocar seu santo nome e guardar o verdadeiro sábado que é o descanso espiritual. Que entendimento humano têm farejado e rastreado jamais por seu sentimento natural, que o verdadeiro culto a Deus consiste nestas coisas e outras semelhantes? Porque quando os pagãos querem honrar a Deus, mesmo afastando-se mil vezes de suas loucas fantasias, voltam sempre a recair nelas. Certamente confessarão que os sacrifícios não agradam a Deus se não lhes acompanha a pureza do coração. Com isso testificam algum sentimento do culto espiritual que se deve a Deus, no qual falsificam logo de fato com suas falsas ilusões. Porque nunca poderiam convencer-se de que o que a Lei prescreve sobre o culto é a verdade. Será razoável que elogiemos vivamente e alto a um entendimento que por si mesmo não é capaz de entender nem querem escutar a quem lhes aconselha para o bem?
Quanto aos mandamentos da segunda tábua, têm algo a mais de inteligência, porque se refere mais a ordem da vida humana, entretanto até nisto caem em deficiências. Pois ao maior ingênuo lhe parece absurdo aguentar um poder duro e excessivamente rigoroso, quando de alguma maneira pode livrar-se dele. A razão humana não pode conceber a não ser que possua coração servil para suportar pacientemente tal domínio; e, pelo contrário, espíritos animosos e esforçados resistirão. Os mesmos filósofos não consideram vício o vingar-se das injúrias. Entretanto, o Senhor condena esta excessiva altivez do coração e manda que os seus tenham esta paciência que os homens condenam e vituperam. Assim mesmo nosso entendimento está tão cego com respeito a observância da Lei, que é incapaz de conhecer o mal de sua concupiscência. Pois o homem sensual não pode ser convencido a reconhecer o mal de sua concupiscência; antes de chegar à porta do abismo apaga-se sua luz natural. Porque, quando os filósofos designam como vícios os impulsos excessivos do coração, se referem aos que aparecem e se veem claramente por sinais visíveis. Pois os maus desejos que brotam do coração mais ocultamente não os leva em conta.
25. Apesar das boas intenções somos incapazes por nós mesmos de conceber o bem
Portanto, assim como justamente temos rebatido anteriormente a opinião de Platão, de que todos os pecados procedem da ignorância também temos que condenar os que pensam que tudo procede de malícia deliberada, pois sabemos por experiência que muitas vezes caímos com toda boa intenção. Nossa razão está presa portanto desvario, e sujeita a tanta perplexidade muitas vezes, que está muito distante de encontrar-se capacitada para guiar-nos pelo devido caminho. Debelando todas dúvidas o apóstolo Paulo mostra quão fraca encontra-se a razão para conduzir-nos pela vida, quando disse que nós por nós mesmos, não estamos aptos para pensar algo como sendo de nós mesmos “não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma cousa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa suficiência vem de Deus”(IICo.3:5). Não fala da vontade nem dos afetos, pois nos proíbe supor que está na nossa mão nem sequer pensar no bem que devemos fazer. Como? Dirá alguém. Tão depravada está toda a nossa capacidade, sabedoria, inteligência e solicitude, que não pode conceber nem pensar coisa alguma aceitável a Deus? Confesso que isso nos parece excessivamente duro, pois não consentimos facilmente que queiram nos privar de alguma agudeza de nosso entendimento, que consideramos o mais valioso dom que possuímos. Pois o Espírito Santo, que sabe que todos os pensamentos dos sábios do mundo são vãos e que claramente afirma que tudo quanto o coração do homem maquina e inventa não é mais que maldade. “O SENHOR conhece os pensamentos do homem, que são pensamentos vãos”.(Sl.94:11); “Então, disse o SENHOR: O meu Espírito não agirá para sempre no homem, pois este é carnal; e os seu dias serão cento e vinte anos”(Gn.6:3), Julga que isso é assim. Se tudo quanto nosso entendimento concebe, ordena e intenta é sempre mau; Como pode pensar em algo que agrada a Deus, a quem unicamente pode agradar a justiça e a santidade? E assim se pode ver que, donde quer que vá nosso entendimento, está sujeito ao fracasso. Isto é o que achava muito em falta Davi em si mesmo quando pedia entendimento para conhecer bem os mandamentos de Deus. ” Dá-me entendimento, e guardarei a tua lei; de todo o coração a cumprirei”(Sl.119:34), dando a entender com tais palavras que não lhe bastava seu entendimento, e que por isso necessitava um novo? E isto não o pede uma só vez, e sim quase 10(dez) vezes reintera tal petição em um mesmo salmo, demonstrando assim o quanto necessitava conseguir isto de Deus. E o que Davi pede para si, Paulo o pede para todas as igrejas: “ Não cessamos de orar por vós, e de pedir que estejas cheios do conhecimento de sua vontade em toda sabedoria e inteligência espiritual, para que andeis de forma digna no Senhor...” “Por esta razão, também nós, desde o dia em que o ouvimos, não cessamos de orar por vós e de pedir que transbordeis de pleno conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e entendimento espiritual; a fim de viverdes de modo digno do SENHOR, para o seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus”;(Col.1:9-10) “fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as minhas orações”(Fp.1:4). Adverte-se que ao dizer que isso é um benefício de Deus equivale a proclamar que não apoia-se no entendimento do homem.
Santo Agostinho têm experimentado até o limite esta deficiência de nosso entendimento em poder a entender as coisas divinas, que confessa que não é menos necessária a graça do Espírito Santo para iluminar nosso entendimento que o é a claridade do sol para nossos olhos.4 E não satisfeito com isto, como si não houvera dito bastante, se corrige ao ponto, dizendo que nos abrimos os olhos do corpo para ver a claridade do sol, pois que os olhos de nosso entendimento sempre estarão fechados, se o SENHOR não os abre.
Em cada momento nosso espírito depende de Deus
Ademais, a Escritura não disse que nosso entendimento é iluminado de uma vez para sempre, de sorte que em diante possa ver já por si mesmo. Porque a citação de Paulo pouco antes mencionada, se refere a uma ininterrupta continuidade e progresso dos fiéis. E claramente o dá a
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4 Da pena e remissão dos pecados, livro II,cap 5.
entender Davi com tais palavras: “Com todo meu coração te tenho buscado; não me deixes desviar-me de teus mandamentos” “De todo o coração te busquei; não me deixes fugir aos teus mandamentos.” (Sl.119:10) Pois, mesmo sendo regenerado e avançado em relação aos demais no temor de Deus, entretanto confessa que necessita cada momento ser endereçado ao bom caminho, a fim de não afastar-se da doutrina em que foi instruído. Por isto em outra passagem pede que lhe seja renovado o espírito de retidão, que por sua culpa havia perdido “Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro em mim um espírito inabalável”;(Sl.51:10), porque a Deus cabe nos devolver o que por algum tempo nos havia tirado, igual ao que tínhamos recebido no princípio.