A validade das Escrituras Sagradas (João Calvino)
A Lei tem sido milagrosamente conservada
Sei muito bem o que certos sem-vergonhas andam murmurando para mostrar a sutileza de seu entendimento batalhando contra a verdade. Perguntam quem nos dá garantias que Moisés e os profetas têm escrito o que lemos como seu. E nem sequer têm o pudor de perguntar se existiu algumas vez o tal de Moisés. Agora bem, se alguém pusesse dúvida que houvesse existido Platão, Aristóteles ou Cícero, quem, os pergunto, não diria que este tal mereceria ser esbofeteado e castigado? A lei de Moisés se tem conservado milagrosamente, mais pela divina providência, que pela diligência dos homens. E, pela negligência dos sacerdotes esteve por algum tempo sepultada, desde que o piedoso rei Josias o encontrou tem sido usada e anda de mãos em mãos dos homens até o dia de hoje continuamente. Ademais, o rei Josias não a deu a conhecer ao público como coisa nova e nunca ouvida, e sim como coisa mui conhecida e cuja recordação era pública e recente. O original estava guardado no Templo; uma cópia autêntica, nos arquivos do rei. Somente havia sucedido que os sacerdotes, e também o povo não tiveram o cuidado de ler como era lido antes. E o que é mais, nunca passou era nem século em que sua autoridade não fosse confirmada e renovada. Não sabiam por ventura quem havia sido Moisés, aqueles que liam Davi? E falando em geral dos profetas, é coisa certa que seus escritos têm chegado em sucessão contínua de mão em mão de pais a filhos, dando testemunho de viva voz os que lhes haviam ouvido falar, de modo que não havia lugar a qualquer dúvida.
A destruição dos livros santos por Antioco
O que esta boa gente objeta sobre a história dos Macabeus, tão distantes estão de macular a certeza das Sagradas Escrituras (que é aquilo que pretendem), que nada se pode pensar mais apto para confirmá-la. Primeiramente desfaremos a cor com eles doram; e logo rechaçaremos seus argumentos atacando-os com suas próprias armas. Posto que o tirano rei Antioco(I Macabeus1:9), dizem, fez queimar a todos os livros da Lei, de onde têm saído todos os exemplars que agora temos? E lhes pergunto por minha vez donde foi podido escrever tão exatamente, se não faltou nenhum. Porque é coisa sabida que logo que a perseguição acabou, os ditos livros foram encontrados inteiros e perfeitos,o que todos os homens piedosos que os haviam lido e familiarmente os conheciam, testificaram sem contradição alguma. Ademais, mesmo que todos os ímpios daquele tempo conspirassem unânimes contra os judeus para destruir sua religião, e cada um deles se esforçava em caluniá-los, como todo, ninguém jamais se atreveu a laçar-lhes na cara que houvessem introduzido falsos livros. Porque mesmo que estes blásfemos hajam tido a opinião que quisessem da religião dos judeus, contudo admitem como autor daquela religião Moisés. Assim que esses charlatões mentirosos mostram uma raiva dessesperada quando fazem menção de que têm sido falsificados os livros, cuja sacrossanta antiguidade é provada com o comum consentimento da História. Pois para não esforçar-me em vão em refultar tão néscias calúnias, consideremos aqui o grande cuidado que Deus têm tido em conservar sua Palavra, quando frente ao parecer de todos e contra toda esperança, como de um fogo a livrou da impiedade daquele cruelíssimo tirano; fortaleceu com tão constância os sacerdotes e os fiéis, que não duvidaram em expor sua própria vida para guardar este tesouro da Escritura para seus sucessores; fechou os olhos dos secretários de Satanás de tal maneira que, nunca puderam desarraigar de todo esta verdade imortal. Quem não reconhecerá esta marca e maravilhosa obra de Deus que quando os ímpios pensavam que haviam queimado todos quantos exemplares havia, de repente apareciam de novo, e com maior majestade que antes? Porque pouco tempo foram traduzidos para o grego, tradução que se divulgou por todo o mundo. E não somente se mostrou o milagre em que Deus livrou os documentos de seu pacto dos cruéis editos e ameaças de Antioco, sendo também em que em meio de tantas calamidades com que o povo judeu foi tantas vezes afligido, oprimido e quase de todo desfeito, contudo a Lei e os Profetas permaneceram em sua integridade e perfeição sãos e salvos. A língua hebraica não somente não era estimada, e ainda tida como bárbara, e quase nada se sabia. De fato, se Deus não tivesse querido conservar sua religião, haveria perecido tudo. E enquanto a que os judeus, depois que vieram do cativeiro de Babilônia, haviam-se apartado da perfeição e pureza de sua língua, vê-se muito bem nos escritos dos profetas daquele tempo; e isto deve-se levar em conta porque com essa comparação se verá mais clara e evidentemente a antiguidade da Lei e dos Profetas. E por meio de quem nos conservou Deus sua doutrina de vida, compreendida na Lei e nos Profetas para nos manifestar por ela a Jesus Cristo no seu devido tempo? Através dos maiores inimigos de Cristo que são os judeus; os quais, com grande razão, santo Agostinho chama de bibliotecários da Igreja Cristã, porque eles nos tem subministrados livros que a eles mesmos não lhes servem para nada.
O valor dos Evangelhos e das Epístolas
Agora vamos ao Novo Testamento, sobre quão firmes fundamentos se assenta esta verdade! Três evangelistas contam a história em estilo lógico e simples. Os homens altivos e orgulhosos desaprovam esta simplicidade; e o motivo é que não consideram os principais pontos da doutrina, dos quais facilmente se deduz que os evangelistas tratam dos mistérios celestiais num nível acima do entendimento humano. Certamente, qualquer que tenha um pouco de honestidade ficará confuso ao ler o primeiro capítulo de Lucas. Mesmo assim, os sermões de Jesus Cristo, que os três evangelistas contam, não permitem que sua doutrina seja menosprezada. Mas sobre todos, o evangelista João, como quem troveja do céu, lança por terra mais poderosos que um raio a obstinação daqueles que não se submetem a obediência da fé. Que mostrem-se em público todos estes censores que ridicularizam tirando a autoridade das Escrituras e desarraigando-a de seus corações e dos demais. Leiam o Evangelho de João, e quer queiram quer não, ali encontrarão mil sentenças que pelo menos os despertarão do sono em que estão. E mais ainda, cada uma delas será como um cautério de fogo que abrasará suas consciências, para que refrem suas risadas. O mesmo deve-se entender de Paulo e de Pedro, cujos escritos, apesar que a maior parte das pessoas não possa entender completamente, não obstante contém uma majestade celestial tal que nos refreia e nos coloca na linha. Mesmo que não hovesse mais que isto, é o suficiente para elevar a sua doutrina sobre tudo que há no mundo, a saber, que Mateus, o qual antes vivia somente para cobrar satisfazendo sua ganância e direitos, Pedro e João acostumados a pescar com seus barcos, e todos os demais apóstolos, homens rudes e ignorantes, nenhuma coisa haviam aprendido na escola dos homens que poderiam ensinar aos demais. Enquanto Paulo, após haver sido não somente inimigo declarado, sendo até cruel e sanguinário, ao converter-se em um novo homem demonstrou claramente com sua súbita e nunca esperada mudança que se via forçado pela vontade e poder divino a sustentar a doutrina que havia perseguido. Ladrem estes cães o quanto podem, dizendo que o Espírito Santo não desceu sobre os apóstolos; tenham por fábula uma história tão verdadeira; apesar de tudo, no mesmo ato é testificado que os apóstolos foram ensinados pelo Espírito Santo, pois os que antes eram menosprezados pelo povo, de repente começaram a tratar tão admiravelmente dos profundos mistérios de Deus.
A perenidade das Escrituras Sagradas
Há todavia outras boas razões, através dos quais se prova que o entendimento da Igreja não é coisa de pouca importância. Porque não se deve ter como pouca coisa que através de tantos séculos já passados, após a publicação das Escrituras, há tido comum e perpétuo acordo em obedecê-la. E apesar de Satanás ter se esforçado de diversas maneiras em oprimí-la, destruí-la e apagá-la totalmente da memória dos homens, como todo, ela, como a palmeira, sempre permaneceu inexpugnável e vitoriosa. Porque quase não houve em tempos passados nem filósofos nem retórico famoso que não haja empenhado seu entendimento contra ela, contudo não conseguiram nada. Todo poder se armou contra ela para destruí-la, mas todos seus intentos converteram-se em esterco e nada. Como pode ter resistido sendo tão duramente acometida por todas as partes, se não tivesse tido mais ajuda além da ajuda humana? Por isto, a bem da verdade deve-se concluir que a Santa Escritura que temos é de Deus, posto que apesar de toda a sabedoria e poder do mundo, tem permanecido de pé por sua própria virtude até hoje. Note-se, ademais, que não foi uma só cidade, nem uma só nação, as que consentiram em admití-la, sendo que em toda amplitude da terra têm alcançado autoridade por um comum sentimento de povos e nações tão diversos, que os demais estão em desacordo entre si, deve nos comover, pois certamente tão pouco se converteriam nisso se Deus não as unisse; entretanto, esta consideração ganhará mais peso quando contemplamos a piedade daqueles que aceitam a Escritura. Não me refiro a todos, e sim àqueles que o SENHOR têm posto como tochas de sua Igreja para que a iluminem.
Testemunho dos mártires
Ademais a isto, com que segurança devemos receber uma doutrina selada com o sangue de tantas pessoas santas! Eles depois de admiti-la, não duvidaram em morrer por ela animadamente e sem temor algum, e com grande alegria; e nós sabendo que ela foi dada com tais garantias, podemos não recebê-la com uma convicção qualquer a que a Escritura possui, posto que a mesma tem sido selada e confirmada com o sangue de tantos mártires; principalmente se considerarmos que não sofreram a morte para dar testemunho de sua fé por uma espécie de fúria ou frenesi(como acontece algumas vezes com certos espíritos fanáticos), senão por zelo de Deus, não desatinado mas sóbrio, firme e constante. Há também muitas outras razões, e de muito quilates, pelas quais, não somente se pode comprovar a dignidade e a majestade das Escrituras no coração das pessoas piedosas, ainda também tendo que defendê-la valorosamente contra a astúcia dos caluniadores. Elas, entretanto, não são por si só suficientes para que se lhes dêem o devido crédito. Assim, pois a Escritura nos satisfará e servirá de conhecimento para conseguir a salvação, somente quando sua credibilidade se imprime através da persuasão do Espírito Santo. Os testemunhos humanos que servem para confirmá-la, deixarão de ser vãos quando seguem a este supremo e admirável testemunho, como ajuda e causas secundários que corroborem nesta debilidade. Pois agem imprudentemente os que querem provar aos infiéis que a Escritura é a Palavra de Deus, porque isto só é compreendido através da fé. Por isto Santo Agostinho1, com muita razão disse que o temor de Deus e a paz de consciência devem preceder, para que o homem entenda algo de mistérios tão elevados.
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1 De utilitate credenti